Filhos da América
Não ficção , 2016
Editora Record
Páginas 398
O testamento literário de uma das mais premiadas autoras da língua portuguesa.
Poucos entre nós, brasileiros, dominam a arte do discurso –o prazer da conversagao– como Nélida Piñon, algo que a escritora faz vicejar em tudo quanto lhe seja terreno de expressao. Sua extensa obra ficcional, diga-se, tem a voz ensaística entre os elementos que melhor lhe definem o caráter multigenero: o gosto natural para o diálogo, para o experimento, para a reflexao, para a exposigao, exercício de leveza por meio do qual, articulando-o a refinada capacidade de construir personagens, a autora investiga a identidade das gentes e evoca o espirito das épocas- pensó em A república dos sonhos, romance épico, já clássico, tanto quanto nos contos candentes de A camisa do marido, seu livro mais recente.
Falo aqui de vocagao. Nélida Piñon é ensaísta o tempo todo. E isso –essa qualidade– diz muito sobre o alcance deste volume. Título que nao esconde a curiosidade e o conhecimento da escritora sobre a tradigao ibero-americana,
Filhos da América abraga –diría mesmo contém– um continente. De assuntos. De ideias. De riscos. De afetos. De apostas. De saudades. De paixoes. De –por que nao?– obsessóes. Machado de Assis, por exemplo, tao presente nestas páginas, é a brasilidade reforgada em Nélida, projegao generosa sobre a humanidade almejada, uma possibilidade de definigao amorosa para o que seja patria –para o que seja responsabilidade individual. É assim, sempre por meio da literatura, que a escritora enfrenta a frouxidao moral dos dias correntes, colocando o dever da escrita de pé, de prontidao, cabega erguida, defendendo o lugar fundamental das "culturas que a modernidade asfixiou" e lhes celebrando a resistencia: "Sao elas que me levam a perambular pelo mundo tendo verbo e imaginagao como atributo." Há muita coragem e perigo nos ensaios reunidos neste livro, nos quais a autora desafía nao apenas a própria memória, mas o conceito do que seja tal mistério. Há uma inquietude aqui. Ela cultiva, sempre, aquilo que nos aproxima, que nos enreda, que nos simplifica –e o faz com juventude, com encantamento, com espanto ante o fenómeno sempre renovado do idioma. Porque é a língua –naquilo que encarna dos séculas– o agente que humaniza. Nélida Piñon nao somente ere nisso -ela trabalha, milita para isso, escreve para isso, daí por que esta também seja uma obra de devogao, de fé. Carlos Andreazza, Editor